domingo, 14 de outubro de 2007

Nos Palcos: para sempre Senhor

Não se engane. Esse texto não é uma homenagem. E não poderia mesmo ser. Porque a percepção, a satisfação, a identificação e o aplauso não são dignos de uma respeitável homenagem. A pequenez diante da grandeza é sensação apenas. Não pode ser traduzida. Não pode ser narrada. E é por isso que o aplauso verdadeiro fala sempre mais pra quem aplaude que pra quem é aplaudido. Porque quem é merecedor de reconhecimento sempre sabe que o é, independentemente da platéia. Mas aquele que reconhece a grandeza e embarga a lágrima tem a certeza de que algo mudou, como em uma viagem a si mesmo. Uma mensagem para a alma. Eu só queria fazer um texto para dizer que senti profundamente a perda de um grande... de ideais nobres, de paixão intensa pela arte. Não dessas paixões avassaladoras, mas uma paixão comedida, respeitosa. Quiçá amor. Mas eu não posso fazer esse texto. Porque não é a perda que me comove, mas o legado. O respeito à superioridade, à soberania e até a certa soberba, talvez. Eu queria dizer que fiquei triste. Mas não posso. Porque a lástima não é pelo fim, mas por não ter aproveitado mais. Por não ter aprendido mais. Eu não seria tola o bastante para fazer uma homenagem, como em uma série de reportagens especiais guardadas para o dia da morte ou do aniversário de morte de alguém. Sei que ele não quereria esse tipo de homenagem. Porque já sabia dos resultados do seu trabalho, dos seus ganhos e de suas perdas. Não por acaso se ateve ao prazer de solidificar o que deveria ser efêmero. Um olhar especial – diferenciado por natureza – para a entrega incondicional à arte. Íntima. Sem os holofotes prenunciados por Andy Warhol. Muito mais que isso. Eternizou-se por dar mais vida à vida. Sem contornos canônicos. Longe disso. Não se trata aqui de falar do homem – porque não sei do homem –, mas de sua contribuição inegável aos palcos, às telas. Shakespeare ficou mais feliz. Glauber ficou mais feliz. Molière ficou mais feliz. E, eu, com tímida razão, também fiquei mais feliz. Porque pude entender um pouco mais. Sentir. Sorrir. Eu guardei a mensagem que pude. Indescritível. Inexprimível. Pessoas assim não entram em cena e saem do drama impunemente. Tem muita gente ainda aplaudindo por aí. Não esses que reproduzem discursos feitos. Tão eloquentes quanto vazios e infecundos. Vou ficar com a busca. Com o sereno. Com o Resto e com o Silêncio. E é por isso mesmo que esse texto não é – nem de perto – uma homenagem.

Experimentações em 35mm

O humor era ácido. O riso discreto. Era intrigante. Elegante. Inteligente. Sabia seduzir. Tão apaixonante quanto blasé, em relação a tudo e a todos. Tão sexy quanto uma sessão de fotos de Eva Green. Não era vulgar. Era fumante. Casos etéreos. Tão preocupada com a vida quanto um flanêur é preocupado com as horas. E nada mais importava. Nada mais valia. Não conhecia o amor e nem queria conhecer. Não era do tipo que buscava colo. Gostava de chorar sozinha, de não dar satisfações. Mas todo mundo, um dia, precisa se entregar. Doar-se sem fins lucrativos, sem pegar o troco.

Uma única paixão: fotografar. No laboratório, um quarto escuro da casa, mergulhado na bandeja com o banho revelador, o seu alvo. Agitava a bandeja e só iria demorar um pouco para que sua obsessão começasse a aparecer. Diante da luz vermelha, lentamente ia surgindo no papel fotográfico uma ruiva deitada na areia, olhos claros, cabelos no pescoço, tatuagens, biquíni discreto. Tinha sido uma fotografia despreocupada, como tudo mais que ela fazia. Mas alguma coisa havia mudado naquele momento. Depois da primeira avaliação, logo antes de outros banhos químicos, um prazer especial. Uma fixação. Algo que retinha, tragava, colhia. E por algum motivo que nem Sonhos nem Pesadelos da Razão podem Esclarecer, morar de frente para o mar a faria abrir a janela para encontrar êxtase e redenção. E isso já bastaria.

Toda tarde, lá estava ela: a observar, a fotografar... Eram sorrisos, instantes, a solidão da ruiva que parecia não ter amigos, mas assumia um encontro marcado com o mar. Mesmo com chuva, mesmo sem pôr-do-sol. Foram muitos dias de profunda admiração. Com a câmera na mão, uma estranha sensação de impotência diante do silêncio da beleza alheia. Mas houve um dia em que os olhares se cruzaram. A fotógrafa e a ruiva se reconheceram por um instante. Era mais que um belo retrato sob linda luz. Mais que duas belezas em sintonia. Havia ali naquele instante uma espécie de libertação. Uma sabia o que a outra buscava.

Abaixou a câmera por um instante e acendeu um cigarro. A outra pediu fogo. Depois da aproximação, não precisou de muita conversa para que se confirmasse o desejo mútuo. Perfume bom, toque suave. No apartamento, a ruiva ficava igualmente surpresa e maravilhada com suas fotos espalhadas pelas paredes. A temperatura do banho estava alta. Revelava a harmonia de duas lindas mulheres nuas. Podia-se sentir uma linda escala de degradê no ambiente. Prazer, suor, fascínio. A experiência resultava no equilíbrio das cores fortes com a sutileza de um filme em preto-e-branco. Beijos perfeitos, mãos suaves. Uma revelação sem negativos. A química que produzia muito mais que um retrato.

domingo, 7 de outubro de 2007

A lógica do contra-senso

Presenciei certo dia uma anosa discussão acerca das possibilidades. Sala de aula. O tema era o acesso a dispositivos que permitem a percepção mais crítica e aprofundada da realidade. Se o assunto era lugar-comum, mais prosaicas ainda eram as respostas. Discursos ordinários. Em meio à homilia irritante, pensei, pensei, mas calei. Cansei.

É extremamente intrigante o fato de que grande parte das pessoas que – teoricamente – tem a possibilidade de apresentar uma postura militante, não marcha passos além do fluxo condomínio-descrença-lazer. E igualmente estarrecedora é a realidade das Universidades brasileiras e de seus estudantes imersos na insanidade de uma tal corrida pós-moderna. Estão todos à procura de um estágio. Um lugar ao sol. Sem olhar muito para os lados.

Problema ainda maior é quando se generaliza a parte pelo todo e, metonimicamente, a sociedade – sobretudo uma classe que insiste em juntar os cacos de algum prestígio social – adquire miopia moral para enxergar a identidade verdadeira das realidades afastadas do asfalto. A parcela criminosa de qualquer favela carioca, a título de exemplo, não é nem nunca foi mais que 1% daquele determinado espaço. E, no entanto, os estereótipos são reforçados em imagens midiáticas triviais, sem fundamentação, fortalecendo crenças sem questionamentos – na maioria das vezes.

Paradoxalmente a essa tendência, crescem os discursos – tantos deles hipócritas – acerca das injustiças sociais. Fala-se muito em solidariedade, programas de inclusão, projetos mirabolantes. Uma visão maniqueísta que se limita a olhar de cima pra baixo – quase sempre de rabo-de-olho. Não seria, ao contrário, necessário refletir a partir da ótica da contradição para alcançarmos a democracia, de fato? Se continuarmos com o discurso da amenização das dissimilitudes, apenas estaremos tentando resolver um problema que não sai das margens do asfalto.

E seja no asfalto ou no alto dos morros, fica cada vez mais evidenciado o fato de que no Brasil as pessoas, em geral, não votam em partidos e idéias, mas em pessoas. Nessa lógica, a figura do presidente não tem outros contornos, a não ser os ‘messiânicos’. Ademais, Brasília parece estar cada vez mais próxima da ‘Terra do Nunca’. Não se pode mais encobrir o momento singular da trajetória brasileira. A possibilidade de identificação dos nossos problemas já pode ser constatada pelos grupos sociais mais distintos, independentemente de sua localização geográfica.

Estamos entrando, ainda que por vias tortuosas, em sintonia? Eclodem diferentes expressões de arte, de pensamentos, de ações. É imperativo explicitar a flâmula do social. Abrandar as diferenças é propor a coreografia do retrocesso. Nossa realidade historicamente velada não consegue mais permanecer em tons pastéis. As percepções de uma sociedade que sempre viu a desigualdade como normal e da mesma forma negou a diferença começam a apresentar-se em cores fortes. Magenta. Carmim. Zarcão. Uma trajetória pelo avesso, tentando encontrar nos problemas, a saída – ainda que seja a de Emergência. Começa a emergir, enfim, a lógica da incongruência. É necessário aquilatar a diferença.

domingo, 30 de setembro de 2007

Partindo o espelho

Tinha acabado de tomar banho. Não me reconhecia no espelho. Ainda nem tinha me acostumado com a nova identidade. Nome e aposto mais bregas que atraentes e lá estava o cartaz: “Kelly, a safadinha...”. Dançar havia sido fácil. Fio dental e peitos de fora, adolescentes de pau duro, casais liberais, lésbicas histéricas, dinheiro na lateral da calcinha e mãos na bunda. Muitas. Quinze minutos no palco. No camarim, as mulheres se pintando, se drogando, se beijando.

A dona da boate havia marcado meu primeiro programa. Alto executivo. “Paga bem”, disse uma das meninas. E acrescentou: “se gostar de você, vai te procurar sempre. Vê se fode bem!”. Seriam quatrocentos reais por duas horas. Pras meninas, um verdadeiro negócio da china. Pra mim, não fazia a menor diferença. Não estava ali pelo dinheiro. Era a experiência que me fascinava. O íntimo. O visceral. Queria trocar o luxo pela luxúria, minha vida medíocre pelo ambiente hostil. Queria o escatológico, o feio, o sujo.

O meu primeiro cliente lembrava o meu pai. Edipicamente falando, não havia sido necessariamente ruim por isso, mas pela ausência do grotesco. Era tudo limpo demais, chato demais, harmônico demais. Eu não admirava o erudito, não queria uma vida melhor, não buscava o bonito. Já conhecia outros países, já falava outras línguas, já consumia Moet & Chandon, já usava Armani. Mas era chato demais ser uma coisa mais linda e mais cheia de graça num doce balanço a caminho do mar. Ainda não havia encontrado o que desejava.

Não voltei pra boate. Parei num botequim tão limpo quanto a Central do Brasil. Sentei no banco alto junto ao balcão. Os homens que estavam na sinuca não paravam de me despir. Havia mulheres negras, sambando, rebolando, bebendo e rindo alto. Dava tesão vê-las daquele jeito e olhando pra mim com ar de competição. Dava tesão o cheiro de banheiro sujo, cuja fluência da fila era equivalente ao trânsito da Barata Ribeiro. Dava tesão ouvir a música alta, beber a cerveja ordinária, ver as prateleiras imundas.

Escolhi uma mesa à qual estava sentado um homem cujo humor era tão heterodoxo quanto a cor original do seu bigode amarelado e o tamanho de sua barriga. Não havia mais nada a questionar, nem a escolher. Acabava de encontrar o que eu queria. Serviria de inspiração para a masturbação dos restos dos dias daquele porco nojento, que talvez nem acreditasse no dia seguinte. Talvez se separasse de sua esposa gorda, de peitos caídos, mãe de duzentos filhos e voltasse para aquele bar toda vez que se lembrasse da melhor alucinação de sua vida, depois de uma dose de cachaça barata. Talvez esperasse minha ligação. Talvez. Eu já estava satisfeita com as possibilidades. Com um pouco de realidade. Um pouco de sujeira na minha vida limpa. Fria. Vazia. Cheguei em casa e não tomei banho. Mas me reconheci no espelho.

Coisas de Família

Nem All Star, nem salto alto. Descalça. “Veste esse rosa”, a mãe sugeriu. “Não”, ela respondeu. “Já sei! Quer aquele amarelo, né? Mas aquele amarelo é muito decotado, filhinha!”. “Não! Nada!”. Foi a vez do pai, conservador, direita extrema, que resmungou “Daqui a pouco vai estar vestida como aqueles delinqüentes de preto, com uma guitarra na mão...”. Mas ela persistiu “Só quero nada!”. E decidiu não falar mais nada. Não saía da cama. Não comia. Não vestia. Não estudava. Não se masturbava. Não queria. Foi primeiro a voz da tia loura, devota de Ivo Pitanguy – daquelas que tentam recuperar a juventude sonhando com a bunda do professor de ginástica – que ecoou “Ih, é caso médico. Tem que internar...”. Mas a avó, como toda boa avó gorda, que vê beleza nas caras caramelados dos netos rechonchudos de coca-cola e Mac Donald’s interveio “Deixa eu fazer um bom mingau de aveia. E salada de frutas com creme de leite. E bolo de cenoura com calda de chocolate!”. As formigas agradeceram, mas ainda assim, nada... Nenhuma palavra. Um tio disse que só Jesus a salvaria. Mas, no fundo, criam todos que o caso estava mais pra terreiro que pra pagamento de dízimo. O irmão ofereceu um cigarro. Produto jamaicano. Dos bons. A prima vagabunda conseguiu um leve gemido depois de passar sua língua no mamilo, mas não foi adiante por falta de reação – sentia-se gostosa demais por tão pouco. O tio alcoólico ofereceu o velho e bom professor. Doze anos. Com muito gelo. E cada vez que alguém entrava naquele quarto, Thomas Edison dava o ar de sua graça no fim do túnel, mas o fracasso vendia seus méritos sempre na saída. Àquela altura, já não era por ela. Na verdade, nunca havia sido. Nem pelo caso. Nem pela vida. Era por cada um. Por si mesmo. Quem alcançaria o grande feito. Quem teria os créditos. Quem seria laureado. Agraciado. Medalha Olímpica. Pódio. Redenção. Já perto de desistirem, decidiram que o caso era acaso. Não. Obra da transcendência. Sim. Era mais fácil desse jeito. Era melhor culpar o invisível que admitir o próprio fracasso. Entrou um padre com água-benta. Um pastor com uma Bíblia. Um pai-de-santo com farofa, cachaça e frango assado. Mas não houve Buda nem Gandhi nem Jeová que desse jeito. A fome já começava a apertar. “Vamos pedir uma pizza!”. “Mussarela!”. “Calabresa!”. “Meio a meio!”. “Fechado!”. “Um chopinho também é bem vindo...”. Já ia começar a partida de futebol. Logo depois do último capítulo da novela. Foi quando a menina se levantou, vestiu qualquer coisa e saiu do quarto. Todos se entreolharam boquiabertos. Não por surpresa, mas por decepção. Como teria ousado não esperar as ordens? Uma verdadeira atitude transgressora! Mas a egrégora da sala não permitia outra coisa além do silêncio. Das derrotas íntimas. Das certezas falidas. Houve um acordo tácito. Ninguém comentaria sobre o caso... “Pega mais um pedaço!”. “Desce mais um chopp!”. As atenções agora estariam voltadas, num misto de identificação e voyeurismo vazio, para a qüinquagésima edição dos grandes irmãos instantâneos...

sábado, 22 de setembro de 2007

Si tu savais comme j'ai envie d'un peu de silence...

Eu não gosto do sol. Não gosto da chuva. Eu gosto do vento. Ele não aquece. Não lava. O vento varre... Traz e leva a poeira. Arbitrariamente. Indomável. Un parole encore. Au vent...